sexta-feira, 15 de abril de 2011

KEITH JARRET VISTO POR TURI COLLURA.


O pianista e educador italiano Turi Collura, atualmente em atividade em Vitória, ES, relata sua experiência e sensações assistindo ao concerto de Keith Jarret no Rio de Janeiro, dia 09 de abril de 2011. Exclusivo para Música Nas Alturas.

“Todo muçulmano sabe que tem que ir, pelo menos uma vez na vida, à Meca. Da mesma forma, acho que todo ser humano que leva a música a sério deveria ir, pelo menos uma vez na vida assistir às criações extemporâneas do pianista Keith Jarrett para contemplar a capacidade desse homem em derramar o conteúdo da própria cornucópia musical sobre a humanidade e doando verdadeiras pérolas musicais de forma tão surpreendente. É verdade, nem sempre a mágica acontece de forma divina; são muitos os fatores que entram em jogo no processo compositivo, especialmente quando este é feito na hora, "ao vivo e em cores".
               
Numa entrevista concedida em 1993 ao japonês Kunihiko Yamashita, Jarrett afirma que a improvisação é a maneira mais profunda, na música, para se entrar em contato com a realidade no momento em que ela acontece. E essa realidade depende, também, do ambiente circunstante, das pessoas que ali vão participar do evento. O pianista pede sempre silêncio, para que a mágica aconteça. Quem o acompanha sabe que ele sofre quando na plateia alguém tosse, perdendo a concentração necessária à sua arte e chegando a parar o concerto. Na entrada do Teatro, graciosas moças distribuíram pastilhas Valda. Na hora não me toquei, mas depois suspeitei que tenha sido uma tentativa da produção para reduzir o barulho na sala.

Após 22 anos, finalmente Jarrett voltou ao Brasil, para duas apresentações, a primeira das quais em São Paulo no dia 6 de abril, a segunda no dia 9 de abril no Rio de Janeiro.

Assim que soube de sua vinda, não pensei duas vezes em procurar uma passagem de avião, para mim e para minha esposa, companheira de aventuras, para mais uma "empreitada musical". A viagem começou em Vitória, rumo à ex-capital federal, Rio de Janeiro, hoje ainda capital cultural do país, junto a São Paulo. Uma semana antes do evento os ingressos, com custo que iam de 120 até 400 reais, estavam esgotados. Mas para mim, um evento como esse não tinha preço, mesmo tendo que pagar uma viagem de avião.

Preparei-me muito, para esse evento. O peregrino que enfrenta o caminho de Santiago sabe da importância que tem o próprio percurso, rumo à meta. Bom, acho que eu cheguei preparado, ao concerto: sabia que estava indo para uma sala de concerto onde Keith criaria alguma coisa, servindo-se da vibração da platéia, da energia coletiva do momento. Por minha vez, como pianista, sei bem o que isso significa, quais os riscos da improvisação, quais suas necessidades. Tinha- me preparado: sabia que era para eu ficar quietinho, em silêncio. Sei que ele pede isso; toda vez é a mesma coisa. Os fãs do artista sabem que ele pode levantar a qualquer momento e deixar o palco, se alguma coisa o incomodar. Ainda, além de pedir silêncio, pede para ninguém fotografar. Afinal, não são coisas difíceis de se realizar, tanto para mim, assim como para muitos outros que estavam no teatro. Mas, sabe-se que basta um único “infeliz” para destruir qualquer projeto e no Municipal havia muita gente que não se se preparou o suficiente para o evento. 


Estavam acontecendo dois concertos ao mesmo tempo: o do pianista e o da platéia! Talvez o fato é que o público queria participar ativamente ao processo criativo! Confesso que acompanhei as duas horas de apresentação com medo que ele fosse parar… de fato às vezes parava uma música na metade, com os excessos de tosse da platéia, sacudia a cabeça, mas raramente falou disso com seu público. Ele estava a fim mesmo é de tocar! Confesso que em alguns momentos, cheguei a imaginar, pela quantidade de tossidas, que alguma turma de tuberculosos tinha entrado no teatro. Por falar em teatro, merece destaque a reforma do Municipal, que está lindo demais! Pena que as cadeiras fazem barulho! Então era todo um vai e vem de barulhinhos.


Fechei os olhos, e a cena que veio na minha mente foi a de um "concerto para piano e floresta tropical": um pianista tocando no meio de uma floresta cheia de barulhinhos, no meio da natureza, dos bichos. O celular que tocou no começo era um grilo que não tinha ouvido os insistentes pedidos para que se desligasse. Ele se incomodava, mas continuava.

O primeiro set durou uns 40 minutos. Após uma abertura atonal, Jarrett alternou baladas a músicas ritmadas ao estilo dele. Tudo improvisado, nada de standards, nem no “bis”.
Um intervalo de cerca 20 minutos animou o público, que lotava 100% o teatro. O segundo tempo durou um pouco menos que o primeiro, pois Jarrett se incomodou com os flashes vindos da “floresta”. Naquele momento, eu disse para mim mesmo “não vai voltar”. Mas tinha muita gente interessada no concerto, muito músico bom, muitos amantes das boas maneiras, e as palmas sinceras e intensas convenceram o pianista a sentar novamente na frente do instrumento.

Após uma conversa com meu amigo Davi Sartori, grande pianista de Curitiba que assistiu ao show em São Paulo, pareceu-me que a sequência das músicas não era nada improvisada. A sequência de São Paulo foi a mesma da do Rio, pelo visto. Jarrett terminou com bem três músicas como “bis”… talvez fosse tocar mais… mas outro flash, bem nas primeiras filas da platéia, disparou na cara dele. Jarrett apontou para todos a mente brilhante que tinha disparado e fez sinal de que com isso acabava a festa. Foi embora para não voltar.

No total, foram quase duas horas de apresentação, em que o pianista mostrou a arte de se fazer música da mais sublime. Com sua técnica peculiar, brilhante e precisa, continua, aos 66 anos surpreendendo a todos. Após uma balada que me fez lembrar, um pouco, o último movimento do Köln Concert, a última música foi uma verdadeira aula de piano! Chopin estava ecoando no municipal, onde Jarrett juntava 300 anos de história pianística numa única música. Foi aí que o público parou de respirar mesmo, até os mais distraídos. Foi o momento do delírio total, das lágrimas movidas pela música sublime.


 Saí de lá num estado de graça, ou, quem sabe, num estado de choque. Não falei até a manhã do dia seguinte. Queria manter aquelas notas na minha cabeça. Continuo amando esse artista, homem de difíceis relações interpessoais, mas que ao piano, segundo um parecer comum que compartilho, é simplesmente um deus do Olimpo musical! Viva Jarrett, até a próxima!”
                                            Turi Collura.




6 comentários:

  1. Ufa, esse concerto deve ter sido bom. Ruim é depender do humor do artista e do comportamento de seu vizinho.
    Tossir, é inevitável, é um sintoma de desconforto e tensão. Não há um espetáculo, seja de música ou teatro, onde as tosses não estejam presentes. No cinema é mais difícil.
    Agora, se o clima já é de "proibido tossir", aí é que se tosse mesmo. Abuso das fotos (flashes)já é outra história.
    Mas Keith Jarret deve ter saido feliz por dividir sua arte, de primeira, com os brasileiros.
    Bela narrativa do Turi Collura.

    Ernani Salles.

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  2. Caro Ernani,
    eu mesmo já tive que sair de uma peça por não conseguir parar de tossir. Não é mole não.Perdi a peça e o ingresso.
    Realmente um clima de tensão antes do concerto provoca tosse.
    A narrativa do Turi está tão boa como deve ter sido o concerto. Senti-me lá.
    Bom tê-lo por aqui novamente.

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  3. Keith Jarret, uma pena perder. Mas eu não teria grana mesmo, estou numa pindaíba daquelas. Li o comentário e deu inveja. E raiva pelas tosses e celulares e flashes.

    Niltinho.

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  4. TRANSCREVO TRECHO DE ARTIGO DE ARTHUR DAPIEVE EM O GLOBO:

    "Não fui vê-lo (Jarret)nas duas vezes anteriores em que ele esteve no Rio. Devia estar louco.Ou muito mal de grana.Talvez os dois.Porque o primeiro Jarret, assim como a primeira vez, a gente não esquece vez.(...)nem um fotógrafo compulsivo conseguiu estragar a noite, mas é impressionante como as pessoas tossem e pigarreiam no Municipal. Acho que tuberculoso toca meia."

    BEM QUE O TURI COLLURA DISSE QUE ERAM DOIS ESPETÁCULOS: JARRET E A PLATÉIA. QUANTA TENSÃO !

    Niltinho.

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  5. Meu caro Niltinho,
    O Dapieve tem o DNA de roqueiro e por isso esse espanto com o Jarret. Também li essa coluna- ele ficou "deslumbrado" com o KJ.

    Curioso como as tosses viraram atração. Volto a comentar que em qualquer espetáculo que haja uma expectativa de artista temperamental as pessoas já saem de casa tossindo.
    O importante é que KJ confirmou seu papel como o nº 1 do business-jazz-show mundial.

    Obrigado pela visita.

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  6. Olá meu caro Coimbra,
    Gostaria de convidar você e seus leitores para as comemorações do 2º aniversário do Jazz + Bossa + Baratos Outros (www.ericocordeiro.blogspot.com).
    Abração!

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