segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

KIND OF BLUE.

Texto originalmente publicado no suplemento Pensar, do jornal A Gazeta, ES, dia 03/12/2011.



Não adianta, está na boca do mundo: “Kind Of Blue”, de Miles Davis, é o grande marco da discografia do jazz. É difícil mudar, assim como convencionou-se que o quadro “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, é referência da pintura, ou “Cidadão Kane”, de Orson Welles, do cinema, “Ulisses”, de James Joyce, da literatura, “O Pensador”, de Rodin, da escultura e assim por diante. Massificou, virou folclore, mesmo com um fundo de verdade. Mas tudo ocorreu com a ajuda da influente CBS e seu poder de marketing e de distribuição de discos.

Então, mais um livro lançado sobre a famosa gravação de 1959, realizada em uma catedral transformada em mega estúdio da Columbia Broadcasting System (CBS), em Manhattan, Nova Iorque. Com um título epopeico, “ Kind Of Blue – Miles Davis E O Álbum Que Reinventou A Música Moderna”, Richard Willians, jornalista britânico, utiliza como mote a gravação do quinteto liderado por Miles Davis para discorrer sobre a música pop dos últimos 50 anos. Na verdade o título original é mais condizente com o conteúdo do livro: “ The Blue Moment – Miles Davis´s Kind Of Blue And The Remaking Of Modern Music”. Este livro é uma viagem literária a bordo do tapete mágico de “Kind Of Blue”.

O autor consegue ser envolvente quando de fato faz um apanhado sobre a função da palavra “azul” nas artes, na filosofia e na religião, e como essa cor foi exaltada e ridicularizada através dos séculos. Ele coloca o “azul” como a cor do equívoco e da incerteza, como l´heure bleu, o momento entre o dia e a noite, entre zonas da existência, entre um tipo de vida e outro. Evoca também o período azul de Picasso, o manto azul da Virgem Maria, o dos mantos de monarcas e cavaleiros dos séculos XII ao XIV, simbolizando coragem e virtude, ou mesmo os vistosos ternos azuis usados pelos poderosos detetives do FBI de Edgar Hoover, e a conotação do azul na cor da eficiência do século XX, principalmente entre executivos corporativos.

Richard Willians cita “A Teoria das Cores”, de Goethe, e seu conceito sobre o azul, considerada por ele uma cor negativa, um resultado da fuga da luz de nós até a escuridão; e Rilke que escreveu poemas de solidão e ansiedade sobre um papel azul: “a aparência dos objetos vistos através de um vidro azul é triste e melancólica.”

Mergulhando no blue, Willians deposita a música do álbum “Kind Of Blue” no fundo de conceitos minimalistas, da introspecção, do melancólico e indica que o termo blue foi registrado entre os negros americanos pela primeira vez em 1860 para formar a expressão que hoje conhecemos como blues, uma música de queixas sociais ou de dores de amor. O autor ressalta, no entanto que o termo blues devils havia sido usado duzentos anos antes, na Europa, como sinônimo de depressão.

Willians demonstra conhecimento de música (ele já tocou bateria e guitarra em grupos de R&B e já escreveu para o Melody Maker e trabalhou para a Island Records) sentindo-se à vontade quando analisa a música de “Kind Of Blue”, sua estrutura modal, apontando os diversos modelos usados pelo grupo, como os gregos Dórico e Frígio e, ao menos, não tira o mérito do papel relevante que o pianista Bill Evans teve ao ser construído esse famoso álbum. Muito dizem que “Kind Of Blue” não existiria se não existisse Bill Evans. Quem conhece o estilo do pianista e ouve o disco, pode identificar sua marca. Miles Davis ficou famoso por saber reunir os melhores músicos, deixá-los trabalhar livremente, e, de certa forma, apropriar-se dos resultados. De fato, uma gravação que reúna além de Davis e Evans, John Coltrane, Cannnonball Adderley, Paul Chambers e Jimmy Cobb, atinge um precioso nível musical.

Miles Davis era poderoso, rico, arrogante e genial. Não havia um negro àquela época que fosse tão imitado, respeitado e endeusado. Nascido em berço de ouro, era a vitrine para os negros pobres, tão ou mais geniais como ele, fosse pela direção que desse à música,o modismo, fosse pelo comportamento. Bill Cosby, um showman muito famoso e conceituado, ligado o mundo jazz, não esconde em seu depoimento no documentário comemorativo dos 50 anos de Kind Of Blue que todos queriam imitar Miles Davis. O terno, o carro, as frases (So What, era um dos jargões de Miles e título de uma de suas composições) suas mulheres, seus relógios, seu estilo de vida. Miles era Miles. Ninguém era conhecido só pelo primeiro nome, só Miles. Na verdade eles também tinham muito medo de Miles, seus repentes, suas críticas e mesmo suas pretensas porradas (seu hobby era o box). Descartava um músico com facilidade e sem temor. Foi assim quando trocou Philly Joe por Jimmy Cobb, Red Garland por Winton Kelly e esse por Bill Evans. Ele, além de sua personalidade, tinha uma máquina capitalista sustentando-o. Disco de Miles não ficava encalhado. Se Miles foi o luxo dos negros por suas atitudes, muitas geniais, Charlie Parker, mais respeitado pela sua arte, baixou a cabeça para si mesmo e destruiu-se. Curioso que, nessa áurea fase de produção, Miles só admitiu dois brancos em sua carreira, com nítida influência e contribuição musical, tendo ambos o mesmo sobrenome, Evans: Gil, o arranjador, e Bill, o mentor e pianista.

Richard Willians além de seus excessos pelo endeusamento de “Kind Of Blue” (chega ao ponto de exclamar que uma música de rua executada com instrumentos primitivos de aborígenes australianos nas ruas de Barcelona, não seria possível se não existe o “Kind Of Blue”) leva o leitor a uma interessante viagem pelo mundo dos vanguardista do século passado como o grupo de vanguardistas La Monte Young, John Cage e Terry Rilley, do grupo Velvet Underground ,de John Cloe e Lou Reed,  Maunfred Eicher, fundador da ECM  e claro, dos figurões do jazz dos anos 50 e 60, como Gerry Mulligan,  Dizzy Gillespie, Winton Kelly, Charlie Parker ou Gil Evans, com histórias, depoimentos e revelações capazes de prender a leitura de qualquer  jazzófilo.

Richard Willians ludibria o leitor em sua proposta conceitual de introspecção, melancolia, quietude blue e modal em sua escrita, mas percebe-se que o livro é tônico, estridente e polifônico. Autor de livros sobre outros fenômenos da música como Phil Spector e Bob Dylan, Willians bem poderia interessar-se por outro disco que teve um impacto tão ou mais que o “Kind Of Blue” em todo o mundo, lançado à mesma época, em 1959: trata-se de “Chega de Saudade”, de João Gilberto, inaugurando o estilo Bossa Nova que até hoje está vivo nos quatro cantos do planeta Terra Essa por sua vez, foi declarada azul pelo astronauta Gagarin “ a Terra é azul...” Boa leitura.


Curiosidades:
“Amantes presenteiam uns aos outros com “Kind of Blue”, de Miles Davis, ainda que sua atmosfera não lhes ofereça consolo, muito menos êxtase. Talvez estejam dizendo: se começar a gostar disso, temos alguma chance” (Richard Willians).

“Para muitas pessoas, esse é o único álbum de jazz na estante. Elas podem tê-lo comprado depois de ouvi-lo na casa de um amigo, em uma loja de discos ou em um restaurante.” (Richard Willians).

“Há estudiosos de jazz, donos de vastas coleções, das que abrangem toda a história do gênero que, sem hesitar, citam “Kind Of Blue” como o item a ser salvo de um incêndio, caso pudessem escolher apenas um.” (Richard Willians).

“Tenho que admitir que possuo uma cópia de “Kind Of Blue”. É ótimo para ouvir à beira da piscina em um dia de sol ou como trilha sonora de um jantar entediante. Se eu tivesse um elevador colocaria esse álbum para tocar nos alto-falantes.” (Dom Joly, humorista inglês).

“O disco de música ambiente mais supervalorizado que existe.” (Richard Cook, crítico de jazz).

“Quando você se apaixona por “Kind Of Blue”, você não para de comprá-lo, um fato que os detentores de seus direitos autorais comerciais reconheceram há muito tempo. Quantas pessoas, em todo mundo, compraram o disco de vinil, substituindo-o quando seus sulcos se gastaram; adquiriram a fita K-7 para o sistema de som do carro;compraram o CD quando a tecnologia mudou e, depois a edição remasterizada e, então a edição especial...” (Richard Willians).


É, nenhum disco de jazz vendeu tanto, a não ser talvez as porcarias de Kenny G. E até me arrisco a dizer que grande parte da putada que comprou “Kind of Blue” também deve ter Kenny G em casa. Já não basta mitificar o músico e o disco, é preciso mitificar o local e o momento em que foi feito, e cada partitura, cada anotação, cada guimba de cigarro fumado durante as gravações. E tudo isso gera mais publicidade, mais exposição na mídia, mais artigos em jornais e revistas, mais vendas. Daqui a pouco essa merda terá vendido mais uns dois milhões de cópias, e será considerada, como música, mais importante que todas as sinfonias de Beethoven. (Garibaldi Magalhães, analista de jazz).

8 comentários:

  1. Valeu pelo trabalho de sua postagem, mr.Coimbra, mas tudo isso não passa de uma inutilidade sem precedentes. Mais um endeusamento, sem mérito justificável, ao sr.Miles Davis. Quem está realmente com a razão é mr.Garibaldi de Magalhães, que faz uma analise precisa sôbre Miles e seu Kind of Blue. E estamos conversado!

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  2. Sr. Predador,

    De fato Miles conseguiu criar polêmicas, amor e ódio, que é o seu caso específico. Sérgio Sônico disse que gostaria de ser odiado como Miles. Por sua vez há quem o idolatre, o que não é o meu caso. Minha idolatria passa por outro hemisfério. Reservo-me a gostar do que eu gosto sem me incomodar muito com o que os outros não gostem.
    Miles foi um rio que passou na minha "eletrola" e fez o meu coração sorrir.
    Agora é cinza, tudo acabado e nada mais. Nada Miles, Nada de Miles.

    As lembranças estão vivas e vou escolher os melhores momentos, com sua permissão, e rodar aquele som maroto do piston engasgado.

    E então, So What ?

    Obrigado pela visita de boa hora.

    Abraços.

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  3. O tempo passa, o tempo voa e a galera continua falando e ouvindo Miles numa boa...
    O que não dá pra negar é que Kind of Blue é um discaço. Há outros discos de jazz melhores? Claro que sim, algumas dezenas...
    Mas poucos tem tanta personalidade ou foram tão influentes. Confesso que não tenho o conhecimento do Garibaldi Malalhães sobre a obra do Kenny G (e nem tenho discos do moço em casa) e nem posso me arriscar a prever que um dia o cabeludo será mais importante que Beethoven, mas sua intolerância me faz lembrar as sábias palavras do escritor capixaba Reinaldo Santos Neves: "O que sempre me surpreende no meio dos admiradores de jazz é a freqüente intolerância com que a maioria deles trata a opinião alheia, quando, é claro, contrária à sua".
    Abração, meu ídolo!

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  4. "Kind Of Blue" é realmente um belo disco, ficando a pergunta = qual disco não é bom quando Bil Evans está presente ?
    O livro é uma bela obra, tão bem editada quanto a gravação.
    Miles, enquanto trumpetista, ficou devendo e muito ao superior marqueteiro que sempre foi e ai, com toda a justiça, bato palmas para ele. Merece elogios um música razoável que conseguiu tantos adjetivos; há que respeitar esse tipo de talento.
    Até 1959 Miles "fez" JAZZ; após distanciou-se e, felizmente para ele (e infelizmente para nós que deixamos de contar com um músico de JAZZ), conquistou glórias em muitas e tantas mutações "musicais" com epítetos os mais variados: palmas para o marqueteiro, lamentável para o JAZZ.
    Prezado COIMBRA: um mais que FELIZ NATAL, que 2012 seja pleno de saude, paz, sucesso pessoal e profissional, se possível alguns US$'s a mais e muito JAZZ, que ninguém é de ferro.
    Pedro Cardoso, apostolojazz@uol.com.br

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  5. Pode-se falar o que quiser. Além da retórica da crítica e dos que falam mal e serão esquecidos bem antes de Miles, colocar Kind of Blue para tocar cala todo mundo.

    Belo texto. Irei atrás do livro.

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  6. Em "ninho de cobras" não meto a mão. Qualquer discussão sôbre a "obra" de Miles sempre será polêmica, nunca se chegará a uma conclusão. E, não estou aqui para falar do "satânico" Miles Davis e sim para desejar a você, Mr.Coimbra e familiares, um Feliz Natal, com saúde, paz e muito JAZZ.

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  7. Pedro Cardoso, o Apóstolo do JAZZ,
    Aprendi muito com suas palavras.
    Estou meio far-west, ping-pong, ponte-aérea.
    Agradeço a Deus pelos verdadeiros seguidores de Bill Evans, que não está sentado nem lá, nem cá, mas ao piano eterno.
    Abs

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  8. Campos,
    Vale a pena ler as historinhas do jazz e, nesse livro, elas são muitas.
    Um grande abraço.

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