SARAH VAUGHAN EM VITÓRIA.
Os grandes espetáculos internacionais em Vitória aconteceram nos anos 1977/78/79 quando a antiga Fundação Cultural estava sob o comando de Marien Calixte No meio campo Sônia Cabral, Afonso Abreu e eu nos desdobrávamos em produzir nomes como o de Astor Piazzolla, Art Blakey, Passport, Dave Brubeck, John York, entre tantos. Cada evento tem sua história que nós quatro bem podemos contar. Hoje vale lembrar de Sarah Vaughn, The Divine One.
Sassy desembarcou em Vitória numa sexta de primavera com uma enorme cabeleira. Cabelos armados eram moda. Sua troupe era o pianista Carl Schroeder, o baixista Walter Booker e o baterista Jimmy Cobb. Alojados no Hotel Senac, veio o alvoroço pois tínhamos um dia curto para os preparativos. Sônia Cabral e Marien Calixte encarregaram-se de ciceronear a estrela. O point era o restaurante do Ferrinho. Schroeder sumiu, assim como Mr. Cobb. Walter Booker não largou do meu pé. As atenções estavam focadas no show de domingo no Carlos Gomes, dia 23 de outubro de 1977.
Como sempre acontece num domingo em Vitória, a cidade assusta, ainda mais à noite, quando só circulam fantasmas. Fiquei no camarim do terceiro andar do teatro com Mrs Vaughn. Eu e a musa, a sós, luzes apagadas, pois as da rua eram suficientes. Walter Booker passou rápido com a missão de passar-lhe uma poderosa cigarrilha cuja fumaça expelida deixava-nos lerdos e feridos pelo insuportável silêncio da cidade. Ela ficou fixa diante do toucador resmungando, ou cantarolando. Nunca esqueci da frase que ela soltou: “o que a gente não tem que fazer para ganhar a vida...” Tradução instantânea e imediata melancolia ao deslumbrar as ruas desertas. Fomos despertados pelo segundo sinal: hora do show. Foi uma noite burocrática, profissional, com o insuportável calor do teatro. Mrs Vaughn enxugava as axilas com lenços de papel e os atirava sobre a plateia, num evidente protesto profissional. Mas o melhor estava por vir.
Foi marcado um jantar na casa de Sônia Cabral, um daqueles sempre lautos jantares que aconteciam após os espetáculos. Houve resistência por parte do grupo, mas, diante de insistência minha e de Arlindo Castro, embarcamos no meu fusquinha. Eu dirigindo, Sassy ao meu lado e, no banco atrás, aquela montanha de carne: Walter Brooker e Jimmy Cobb esmagando Arlindinho. Mr Booker providenciou outra cigarrilha mágica. Com os vidros cerrados, para não poluir a cidade, ficamos a passear pela Praia do Canto e Camburi, num tempo que parecia não terminar. De repente Mrs Vaughn sentenciou: “ I´m hungry, let´s eat.”
Lembrei que em Vitória não tinha nada aberto àquela hora. Ponderei sobre o jantar e que seria simpático comparecermos; o ambiente seria agradável, sem tietagem e tudo mais que a convencesse a ir. A larica falou mais alto. “Let´s go”.
Estacionei o fusca e quando estávamos na rua observei que saía a fumaça mágica da cabeleira armada de Mrs Vaughn. Começamos a rir e não conseguíamos parar. Pisamos a varanda da casa de Sônia e Marílio Cabral e retornamos diante de tanta gente aguardando a estrela da noite. Enfim entramos em fila indiana circundando a longa mesa com aquele irresistível banquete cuja peça principal era um sedutor bacalhau. Demos pelo menos umas três voltas pela mesa, rindo, simplesmente rindo. Os convivas não entenderam muito mas, como já estavam há algum tempo esperando, tiveram no scotch um poderoso aliado para morrerem de rir também, afinal, estávamos todos lá, reunidos, felizes com o acontecimento, Marien Calixte muito mais.
Apresentações feitas, protocolos cumpridos, tornamo-nos um grupo social. Ainda sinto o sabor daquele bacalhau, preparado pela mãe da anfitriã. Cada um foi criando seu grupinho e eu colei em Jimmy Cobb para ouvir as histórias de Miles Davis e John Coltrane. Ele portava no bolso de sua camisa um pente que a cada minuto tirava e passava no cabelo. E contava histórias como se estivesse executando um longo solo de bateria. Schroeder não apareceu no jantar.
Foi uma noite fantástica. Plena madrugada, todos soltos, lânguidos; na sala um piano meia cauda no qual o saudoso Manolo Cabral exercitava seu talento. Pela luz de um abajur a silhueta de Marílio Cabral dedilhando um contrabaixo. Mrs Vaughn, com um copo na mão, aproxima-se do piano, senta-se e começa a tocar. Muitos cochilavam mas os atentos se aproximaram.
A madrugada estendeu-se e na manhã seguinte as estrelas voltavam para o céu. Ninguém sabe ao certo se Schroeder foi também. Mr. Cobb hoje está com 82 anos e em plena atividade, assim como Schroeder. Mr Booker faleceu em 2006 e Mrs Vaughn em 1990
Texto originalmente publicado no Caderno Pensar do jornal A Gazeta (ES) em 09 de abril de 2011.
Prezado COIMBRA:
ResponderExcluirFelizes os então mortais de Vitória, por poder ver, ouvir e um pouco conviver com a absolutamente maravilhora SARAH, dona da voz "absoluta".
Bela resenha, belas recordações de quem viveu.
Obrigado, Mr. Cardoso.
ResponderExcluirVivemos, sim, grandes momentos em Vitória graças à competente empresária Gabi Leib, ainda na ativa em seu antigo escritório na Urca, que se afeiçoou a nós e à cidade; era questão de honra incluir no roteiro de apresentações dos grandes nomes a nossa pequena ilha.
Jimmy Cobb era impagável. Pena que Walter Brooker foi embora; ele era casado com uma brasileira, irmã da mulher de Waynne Shorter que morreu naquele acidente de avião em NY.
Um grande abraço e obrigado pela visita.
Onde estava eu, que não fui ver/ouvir miss Sarah?Relato fantástico, mr.Coimbra, de sua curta e agradável convivêcia com Sarah Vaughan e seus músicos, em Vitória. Fico aqui imaginando as histórinhas que Jimmy Cobb lhe contou. Depois vou querer saber! Parabéns por relembrar-nos dos grandes acontecimentos musicais que tinhamos aqui na ilha. Bons tempos!
ResponderExcluirSr. João Luiz,
ResponderExcluirProvavelmente o senhor deveria estar em casa na ocasião. Foi no dia 23/10/77, lembra-se ?
Mr. Cobb gabava-se então que a turma dele estava indo embora e ele não(Cannonball, Chambers, Coltrane, etc) ; até hoje, com 82 anos, ele é o grande sobrevivente.
Obrigado pela gentil visita.
Um abraço.
Rogerio,
ResponderExcluirAssisti ao show de Miss Vaughan no Teatro Carlos Gomes com um gravador de fita K-7. Logo que entrei no Teatro, ouvi dizer que era proibido gravar. Ignorei tal comentário e começou o show e meu gravadorzinho já estava gravando, quando de repente Milson Henriques falou pra Marien que eu estava gravando, daí me ameaçaram de tomar o meu gravador e eu fui obrigada a desligá-lo e guardar na minha bolsa.
Assisti ao show, belíssimo, foi uma noite de gala pra Vitória.
Engraçado, alguém gravou este show escondido em fita de rolo, que por sinal está guardada aqui em casa - a gravação está boa e a fita bem conservada, guardo esta fita com muito zelo e não adiantou a proibição, e nem me lembro como é que esta fita veio parar aqui em casa.
Um abraço,
Ester Mazzi.
Cara Ester,
ResponderExcluirFoi uma grande noite mesmo.
A fita que você tem eu a deixei, juntamente com outras, numa enorme caixa, quando me desfiz do meu gravador de rolo. Quem gravou foi Coutinho, o nosso técnico de som, escondido: ele pendurou o microfone na vara de luz, no urdimento do palco.
Você é minha fiel depositária.
Um grande abraço.
Rogério Coimbra
Não consigo postar via conta Google.
ResponderExcluirSe algum blogueiro puder, dê-me a dica como solucionar.
Rogério Coimbra.
Maravilhosa resenha, Mr. Coimbra!
ResponderExcluirFantástico!
Tive a honra de conhecer pessoalmente o Marien e passei uma manhã deliciosa em sua casa, conversando e vendo tantas fotografias de músicos que ele (com sua preciosa colaboração) levou até Vitória.
Obrigado por repartir conosco essas histórias tão emocionantes!
Que venham mais!!!
Muito bom. Elisa
ResponderExcluirNossa, eu não era nem nascida!!!!
ResponderExcluirMeu pai tinha uns discos dela, e também da Billie Holiday.
Rogério, você era danadinhos, hein ?
Beijão.
Mestre Cordeiro,
ResponderExcluirMarien é o que a gente pode chamar de gente fina.
Imagino a manhã que passou com ele e as deliciosas histórias que ouviu.
Espero que o Mestre já esteja recuperado.
Um grande abraço.
Minha Santa,
ResponderExcluirSeu pai é um homem de bom gosto.
Danadinho a gente sempre tem que ser pois se vive somente uma vez e tudo deve ser feito no seu devido tempo, senão...
Seja bem-vinda, sempre.
Coimbra, essa história eu não conhecia.
ResponderExcluirImagino como foi fantástica essa cena .
Você está no Rio ? Sábado tem Lula Galvão no Triboz com o Paschoal Meirelles e Sergio Barrozo.
Que tal ?
Um abraço.
Ernani.
Dolorosamente estou em Vitória.
ResponderExcluirNão brinca comigo.
Vá e me represente.
Um abraço
Rogério Coimbra.
Rogério, essa resenha é uma grande sacanagem com as pessoas que não estavam presentes. Somente quem viveu essa experiência pode avaliar o que nós perdemos!
ResponderExcluirGrande abraço, JL.
Sir Lester,
ResponderExcluirVocê perdeu foi o jantar...
Quem frequenta Smalls, Blue Note, Bourbon Street não tem que se lamentar.
Um sonoro abraço.
Ah, não se esqueça que hoje é aniversário de Miles Davis. Sopre uma vela para qualquer fase, melhor, qualquer safra que você preferir
Li no PENSAR, reli aqui, e toda vez será sempre um prazer...! Conta mais...!
ResponderExcluirMinha cara senhora:
ResponderExcluirAlém de navegar, mantém a leitura no velho papel!
PENSAR é um presente que o jornalista José Roberto Santos Neves nos agracia no jornal capixaba A Gazeta; um caderno de idéias que há muito não se vê por essas paragens. Um material muito bem elaborado.
Há tantas histórias, Senhora Véia Internauta, capaz de faze-la corar.
Seja sempre bem-vinda.
Pode contar...na minha idade, continuo me indignando com muita coisa, mas corar...não tem perigo!
ResponderExcluirCaro Rogério.Da primeira vez q a Sarah esteve em Vitória, recebi um tríplice telefonema do saudoso Moacyr Barros,Evanilo Silva e Marílio Cabral,gentilmente me convidando para estar na casa do Marílio, eis que o piano estava desocupado e a Sarah queira ouvir um pianista local, brasileiro. Isso, num domingo, altas horas!Fiquei surpreso, pois trabalharia no dia seguinte,cedo.No entanto, não poderia negar para tão queridos amigos!Lá chegando, soube q vc e o Afonso Abreu já tinham ido embora,o q lamentei.Restaram somente,Marílio e Sonia,a imortal Sarah,Moacyr,Evanilo,Luiz Paixão, Marien e Arthur Moreira Lima q iria dar um concerto no dia seguinte.Então perguntei, por que eu tocar,se o grande pianista Arthur lá estava,qdo ele respondeu q não tocava popular.Realmente,foi uma grande satisfação e honra tocar para a Sarah,porque sempre fui simplesmente um amador, apaixonado pela música, apesar de ter tocado e/ou gravado com grandes nomes da MPB e em alguns locais importantes, como p. ex. OS CARIOCAS,SEVERINO FILHO (gravação tema da TV GAZETA,JOSEPH STANEK/gaitista da SINFÔNICA DO RJ,ABL-ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS onde em 2009 toquei músicas de Jobim e Vinicius;Paulo Moura,Miucha, Tito Madi,Maysa,Miele,etc,etc,fosse em 'canjas' no RJ e Vitória,fosse em reuniões de amigos, como no caso da residência do Marílio em Sonia com a imortal Sarah!Todos nossos amigos aqui citados estão vivos, exceto o grande e saudoso Moacyr,para atestarem esse histórico momento. Há pouco tempo,o Luiz Paixão e eu conversamos sobre aquele maravilhoso momento.Simplesmente faço esse registro em nome do resgate da verdade,em respeito à credibilidade do seu site e tb da sua elevada capacidade profissional.Abraço, Jorge Saadi Filho
ResponderExcluirEu fui ao show e tenho um autógrafo dela. No flyer do show.
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